Pós-evento | MAFP

A catástrofe da morte e suas representações discursivas no Seminário Morte, arte fúnebre e patrimônio: interlocuções, lugares e documentos post mortem

Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida
É uma cova grande pra teu pouco defunto
Mas estarás mais ancho que estavas no mundo
É uma cova grande pra teu defunto parco
Porém mais que no mundo, te sentirás largo


Chico Buarque, Morte e Vida Severina.

A Segunda edição do Seminário Morte, Arte fúnebre e patrimônio, realizado na Casa da Ciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi o resultado de uma parceria de três importantes instituições de ensino superior a partir do alinhamento dos projetos  desenvolvido por três Grupos de Pesquisas – Paisagens Híbridas GPPH-EBA/UFRJ, Estudos de Arquitetura Cemiterial – GEAC (Escola de Arquitetura e Urbanismo | EAU/UFF) e Laboratório de Ensino de História –LEH/UFPEL.

O Seminário estabeleceu o encontro de pesquisadores da Academia, e profissionais de áreas ligadas à saúde e segurança pública, bem como graduandos e pós-graduandos de diferentes cursos, revelando, entre outras coisas, que o recorte temático proposto possui amplo interesse no âmbito de pesquisas científicas, apesar de gerar estranhamento naqueles que acreditam que a morte  e temas associados à finitude humana devam ser afastados e subtraídos do cotidiano e somente vivenciados em seu “devido tempo”. A inversão dessa premissa, foi uma das chaves de discussão, reflexão e compartilhamento de saberes do fórum que, não somente acionou diferentes perspectivas sobre o tema no plano acadêmico, mas também, abriu outros horizontes para pensar o campo epistemológico da morte e do morrer.

Importa destacar que a segunda edição do Seminário trouxe como subtítulo interlocuções, lugares e documentos post mortem propondo, desse modo, uma revisão da proposta que norteou a primeira edição do evento realizado na Universidade Federal de Pelotas – UFPEL cuja temática apontava para questões relativas à Memória, aos simbolismos e imaginários que se refletem nos estudos sobre a morte.  Para os organizadores, está posto que este é um campo científico de muitas possibilidades interpretativas e múltiplos ciclos discursivos a serem construídos. Após esta segunda edição, foi evidenciado ganhos teórico-conceitual  e,  entre outras coisas, o engajamento de outras Instituições de Ensino Superior, docentes, graduandos, pós-graduandos e Grupos de pesquisas interessados em somar forças e aprimorar a proposta que nasceu entre os pesquisadores do grupo de pesquisas Paisagens Híbridas – GPPH-EBA/UFRJ.

A segunda edição no Rio de Janeiro atualizou os temas abordados em Pelotas, em 2018, e ampliou sensivelmente a estrutura do fórum no que diz respeito ao número de sessões de trabalhos e de participantes. O Seminário contou com mesas-redondas, painéis de debates e Sessões de Comunicação que singularmente alinharam distintos temas, pesquisadores e profissionais de campos disciplinares diversos – Médicos, Arquitetos Urbanistas, Paisagistas, Historiadores, Arqueólogos, Psicólogos, Filósofos, Geógrafos, Psicanalistas, Teólogos, Literatos, Advogados.

Quanto aos participantes presentes no fórum, houve o interesse de um número significativo de profissionais e acadêmicos e no que diz respeito aqueles que submeteram trabalhos para as Sessões de Comunicação, as mesas contaram com um número de dez apresentações oriundas de pesquisadores do Sul do Brasil, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro.

A proposta de quatro Sessões temáticas divididas em duas Mesas-redondas e dois Painéis potencializou um vigoroso compartilhamento de pesquisas em andamento. Destaca-se que os olhares  trazidos pelos quatorze profissionais convidados que atuam em áreas nas quais a morte e o morrer se notabilizam como tema central, foi uma  experiência imersiva que, devido a abrangência e  impacto que a finitude humana pode exercer sobre a mais básica e  importante  condição de nossa existência.

Nas suas mais diferentes abordagens, faces e versões, o que foi trazido no seminário movimentou mentes, instigou a introspecção e emocionou, afinal, no transcurso entre a vida, morte, post mortem, a possibilidade de  pensar a derradeira cena final no palco da  vida continuará a capturar nossos sentidos, a sequestrar nossa razão e considerar que os limites estão dados e em  algum momento teremos que dar conta disto.

Na fugacidade da vida, que pode cessar de existir em segundos, vem à lembrança a densidade poética de Paulinho da Viola em Para um amor no recife.  Nos versos dor, luto, tristeza, rejeição e redenção tramam a complexa trama da vida que, se tem seu começo e tem seu fim, tem também muitas possibilidades, como o (re)avivamento da memória e o exercício do não esquecimento, o desejo da volta, o cuidado e o afeto [Que eu voltarei depressa/ Tão logo a noite acabe/ Tão logo esse tempo passe/ Para beijar você]. O compositor captura por meio de letra e música sentidos de uma existência que, possivelmente, muitos de nós já experimentaram.

Para um amor no recife

A razão porque mando um sorriso
E não corro
É que andei levando a vida
Quase morto
Quero fechar a ferida
Quero estancar o sangue
E sepultar bem longe
O que restou da camisa
Colorida que cobria minha dor
Meu amor eu não esqueço
Não se esqueça por favor
Que eu voltarei depressa
Tão logo a noite acabe
Tão logo esse tempo passe
Para beijar você


Paulinho da Viola


HABITUS FÚNEBRES, NECROPOLÍTICA, CUIDADOS PALIATIVOS, LITERATURA, ARTE, CADÁVERES, ASSASSINATOS E DEJETO HUMANO: MORTE E MORRE NAS MESAS-REDONDAS E PAINÉIS NA CASA DA CIÊNCIA/UFRJ

A primeira Mesa-redonda que conjugou dois historiadores e um arquiteto urbanista intitulada Paisagem e patrimônio sob o signo da finitude humana abriu os trabalhos colocando em perspectiva a pesquisa histórica como ponto de partida para entender o processo de construção de símbolos da história do Brasil, mas particularmente no que diz respeito ao contexto político e cultural. Os trabalhos dos historiadores Claudia Rodrigues (UNIRIO) e Geraldo Mártires Coelho (UFPA), apresentaram um panorama onde colocavam em questão a construção de narrativas históricas de um Brasil que não apenas elegia símbolos pátrios mas sobretudo, buscavam a valorização da trajetória de homens considerados ilustres, ou mesmos tidos como heróis, tendo como pano de fundo o fim de suas vidas e os modos civis ou religiosos de encarar seus funerais.

A condução dada por ambos historiadores, lançou luz para um período político relativo ao funeral de Tavares Bastos no Rio de Janeiro, e para a cena cultural da Bella Époque de Belém, centrada nas exéquias do Maestro Carlos Gomes, sendo que ambos ocorreram no último quartel do século XIX. O protagonismo desses homens na construção de fatos históricos e a contextualização de práticas culturais, religiosas e funerárias foram minuciosamente analisados pelos trabalhos, oferecendo assim, uma perspectiva requintada para se pensar o tempo-espaço, usos e costumes da sociedade oitocentista e como a mesma, criou habitus e desenhou paisagens fúnebres, a partir do alinhamento dos seus cotidianos aos signos da morte, em particular, do funeral de nomes da elite letrada e política no Brasil.

Por outro lado, o arquiteto urbanista Carlos Murdock, seguindo uma outra linha discursiva, apresentou o conceito de necroturismo e evidenciou como a cultura contemporânea tem colocado em evidência temáticas onde a finitude humana ganha destaque, seja pelo interesse em visitar lugares nos quais a morte tem a sua presença latente, como cemitérios, ou lugares como  Chernobil na Rússia. A produção de uma cultura material em que o medo, terror, inquietude, apreensão são os elementos centrais revela o quando a questão esta em parte pautada na geração de expressivos ganhos financeiros.   

A mesa-redonda Necropolítica, arte e os lugares fúnebres na contemporaneidade reuniu um grupo de acadêmicos e profissionais que transitaram por um terreno árido que revelou e discutiu, a partir do recorte epistemológico proposto, faces de um tema que  não apenas incomodou, mas  também sinalizou para uma tomada de posição e em particular, um aprimoramento de nossa  vigilância ante os processos e instrumentos que a contemporaneidade tem imputado, sobretudo para grupos sociais frágeis que por  séculos são atingidos por ações que não apenas fere a carne e subtrai almas do nosso convívio, mas  também apaga sonhos, perturba a paz, limita zonas de afetos, diminui a empatia e cria crises na convivialidade de seres humanos que devem  ser tratados como iguais.

As narrativas tecidas na mesa vieram de um historiador da arte, dois teólogos, uma psicanalista e uma psicóloga e teve como norte, a construção de narrativas que colocaram em evidência as formas como estamos submetidos à morte, ao impacto brutal de destruição da vida, à política da morte visando ao controle dos sujeitos por parte do Estado. Trata-se da necropolítica tal como a definiu o pesquisador Achille Mbembe. Diríamos ainda que seriam os interesses políticos que, em última instância, definiriam o que tem direito a viver e o que deve morrer, bem como o que deve ser cuidado/preservado e o que deve ser excluído. A morte, então, passa a ser produzida e intencionalmente pensada, encenada, contemplada.

As palavras, as imagens, as conceituações e teorias colocados ora em confronto, ora em alinhamento pela psicóloga Érika Palottino, pelos teólogos Bruno Rodrigues e Alexandre Cabral (também é filósofo), pelo historiador da Arte e também filósofo  Aldones Nino e pela psicanalista  Monah Windgod,  a partir do recorte temático da mesa, indicaram caminhos sinuosos e de vigorosa diversidade analítica para refletir sobre os sentidos da vida e da morte, das experiências do luto, dos lugares fúnebres e das expressões artísticas que emergem a partir, por exemplo, da necropolítica assumida pelo próprio Estado.

Cada fala colocou em relevo, ao seu modo, reflexões sobre a promoção do alívio diante da dor ao discutir os cuidados paliativos de doentes terminais, os protocolos de luto, as poéticas da ausência e algumas das dimensões do luto.  A sacropolítica, o luto como problema político e a pulsão da morte foram destacados, assim como a destruição, os totalitarismos, as (in)coerências da condição humana e as psicoses coletivas.

O conjunto de temas e questões trazido à tona e compartilhado pelos profissionais e pesquisadores criou um mosaico de diferentes colorações e instigantes abordagens, sempre pautadas pela problematização no âmbito teórico-filosófico e/ou tangenciados por experiências de um cotidiano onde a vida humana percorre fronteiras limítrofes, entre vida e morte, sanidade e loucura, agonia e padecimento.

No engendramento de tais questões, pesquisadores e profissionais da área da saúde formularam ideários que deram conta das dores daqueles que  estão  acamados e dos que  vivenciam de perto o cotidiano de vidas  em estágio terminal em hospitais ou, dos que têm acompanhamento psicológico em consultórios, para  poder seguir em frente  ante as perdas e sofrimento de um ente querido. Somados a isso, as reflexões dos pesquisadores, munidos de saberes teóricos e conceituais, indicaram caminhos para entender com maior profundidade e zelo a sensibilidade daqueles que sofrem perdas irreparáveis.

Os pesquisadores buscaram redimensionar a análise sobre a intensidade da dor que o fim da vida gera no corpo social, conforme o contexto a que se refere, ou, como os estados mortais produzem paisagens ditas “fúnebres” em uma contemporaneidade onde os laços de afeto, empatia, caridade, mostram-se cada vez mais líquidos, frágeis, sem sua real importância. Importância essa que deveria ser dada à vida humana ou mesmo, a outras formas de vida não-humana que, no cotidiano violento da cidade com suas práticas políticas e policiais avassaladores, torna tudo o que diz respeito à vida como algo menor, onde a morte torpe e sádica se, simultaneamente gera espanto, dor, estupor, também gera o impensável: o alívio para aqueles que ignoram ou mesmo esquecem o valor da vida.

A mesa-redonda Literatura, cinema e cibercultura: narrativas da morte, do morrer e do além-túmulo teve como objetivo promover o diálogo entre campos distintos como a História, a Literatura e a Medicina abordando questões sensíveis como a solidão, a morte e o pós-morte.

O Historiador Douglas Áttila, abordou a partir do filme Histórias que só existem quando lembradas, como se dá o confronto com a morte em uma cidade fictícia do Vale do Paraíba, Jatuomba. O filme revela que os seus moradores convivem com espécie de morte vivida em uma cidade devastada pelo tempo e quando entram em contato com a jovem recém-chegada, a fotógrafa Rita, têm suas fotografias como um gatilho para que possam rememorar memórias involuntárias, liberando-os do peso do seu cotidiano. Átilla nos permite perceber o quanto a fotógrafa pode atuar tal como um historiador ou um arqueólogo, ao utilizar rastros e vestígios para a construção de imagens por meio das quais os sujeitos podem entrar em choque com seu passado.

Na palestra ministrada pelo pesquisador Fabiano Dalla Bona nos são reveladas paisagens que compõe a cinematografia da morte ou os lugares da morte através da obra de Gabriele D’Annuzio. Dalla Bona nos brindou com estudos sobre as paisagens cemiteriais, em especial as construídas para os heróis italianos mortos na I Guerra Mundial no Cemitério San Michele, em Veneza. Percebemos na obra de D’Annuzio a mesma intensidade e a passionalidade com que ele viveu, mesmo após o autor se deparar com a face escura da morte. A perda dos grandes amigos e os anos no front de batalha influenciaram de forma incisiva nos seus escritos e a partir de então a morte aparece de forma acentuada, não limitando-se o autor apenas a escrever sobre ela, mas desejá-la intensamente. Os lastcapes apresentados na obra do autor nos permitem atentar para questões relevantes sobre o “direito de lembrar, direito de esquecer” e de como este escritor nos confronta com as sensações de como se relacionar com a morte.

Já o olhar sensível do médico especialista em geriatria Daniel Azevedo nos trouxe as aproximações entre a morte e a velhice sob a ótica do cinema contemporâneo.  Na seleção de filmes apresentada, e em sua construção narrativa, Daniel nos permitiu perceber como a sociedade empreende um movimento de retirar a morte e a velhice do espaço público e de como aqueles que não são velhos são incapazes de ocupar o lugar dos velhos. E a falta de empatia para com os idosos?  E a dificuldade de os jovens imaginarem a degradação de seus corpos e de perceber as limitações por eles enfrentadas?  Esses foram pontos que tangenciaram a fala de médico que a partir do fragmento filmográfico apresentado, capturava sentidos daqueles presentes na sessão, para se embrenhar em uma jornada que nos alertava para os limites de nossos corpos e para as fronteiras socioespaciais, ética e estéticas que todos aqueles que não se encontrarem com a morte ainda jovens, terão que enfrentar. Como fazê-lo?  Será que estaremos preparados?

A partir da fala destes três pesquisadores nos foram reveladas questões sobre o tempo, sobre o passar esse tempo, e entender como nossa humanidade tende a se relacionar com a sua própria temporalidade e a do outro. Como também os seus lugares de memória, os ritos de cada sociedade, as últimas paisagens que se revelam podem provocar um encontro reflexivo que não apenas despertem nossos sensos momentaneamente para a nossa existência, mas sobretudo, para os nossos modos de pensar, agir e enfrentar a jornada da vida.

O painel de encerramento do seminário intitulado O cadáver como documento jurídico e os lugares que o abrigam contou com palestras de três profissionais de áreas bastante diversas, em contribuição à multidisciplinaridade proposta pelos organizadores: o médico legista e policial militar Claude Chambriard, a médica especialista em cuidados paliativos Marina Sevilha e o geógrafo e professor Ivaldo Gonçalves Lima.

O painel buscou investigar diferentes realidades a respeito dos limites, especialmente éticos, que se dão no tempo e no espaço estabelecidos nos estados de pré e pós morte: o tratamento dado a casos de morte inesperada e violenta; o preparo, principalmente psicológico, despendido a pessoas em processo de morte iminente; e as afirmações sociais necessárias à manutenção da essência do sujeito, mesmo após sua morte.

A primeira apresentação foi ilustrada por imagens, cruas e reais, de cadáveres brutalmente assassinados, em diferentes estados de decomposição ou em situações peculiares que conduzem os peritos criminais e os legistas a sugerir e/ou confirmar as dinâmicas das mortes.

A segunda fala apresentou diferentes definições de morte. Significa o fim da vida humana, a cessação das funções cerebrais ou seria simplesmente a ausência de sinais de vida organizada? O que são a morte real, homologada pelo atestado de óbito; a morte civil, perpetrada em casos de prisão perpétua; a morte presumida em função de desaparecimentos; e a morte social, por alienação? Tais perguntas levam à conclusão, sob a visão do profissional que acompanha processos de morbidade em hospitais, de que, principalmente, estar vivo é não colecionar arrependimentos e exercer verdadeiramente o seu direito de escolhas.

O terceiro palestrante, equiparou a vida à existência do ser. Estipulou como objeto de reflexão a micro paisagem fúnebre, configurada pelo epitáfio e pela lápide, em uma situação – ora de orgulho, ora de constrangimento – dos funerais de uma artista transgênero em que família e amigos conduziam o evento a homenageando pelo nome social feminino, enquanto instituições religiosas e cíveis a identificavam pelo nome masculino de registro civil. Na vida e na existência o sujeito precisa ser sempre aduzido como o ponto de inflexão e o acento para as decisões que ocorrerão após sua morte. Sempre em busca da ética como mandatária dos procedimentos, sejam eles jurídicos, morais ou existenciais.

Daqui a dois anos, estaremos reunidos novamente para enfrentar semelhantes arcos discursivos e compartilhar em um novo encontro outras possibilidades para pensar a morte e o morrer.


Rubens de Andrade
Mauro Dillmann
Jackeline de Macedo
Guilherme Araujo de Figueiredo

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