O jardim como um locus que produz mundos

 

Após o advento da “virada espacial”, a concepção geográfica sobre o espaço no estudo da produção do conhecimento científico, adquiriu uma potencialidade interpretativa de cunho de natureza situada, admitindo que sua vinculação às demais ciências sociais, depreendeu compreender o espaço, também, por meio de seu aspécto agencial, ou seja, dentro da sua capacidade dinâmica de se relacionar ativamente com a esfera social. Dito de outra maneira, o espaço passou a ser analisado sob seu duplo aspecto, pela sua função intercausal, simultaneamente, como produto e vetor de relações sócioculturais.

Sob esta perspectiva, o espaço deixa de ser considerado somente um receptáculo passivo de ações científicas e sociais, para assumir, também, um papel ativo e dinâmico na produção de ciência e na geração de ordem social.

Embora, menos habitual do que um laboratório fechado, a forma espacial de jardim, será considerada, a partir de então, como uma espécie de laboratório a céu aberto. Um lugar de produção de conhecimento e um espaço de práticas científicas que atua ativamente como um “locus” da produção destes saberes do mundo e sobre o mundo. Desta maneira, a forma espacial de um jardim e suas práticas atuam não apenas como um produto social ou científico, ou seja, um reflexo de processos culturais, mas também como um vetor de relações entre a ciência e a sociedade. O jardim passa a operar como um dos seus fatores constitutivo,  transmitindo mensagens, por vezes, simbolicamente codificadas entre estes dois mundos e colaborando para transformar ambos.

Após a virada espacial, o foco e a percepção sobre o espaço ganhavam protagonismo na história da ciência. Deixaram de ser visto sob seu papel passivo para adquirir agencialidade na constituição das relações sociais, culturais e científicas.

Sob esta perspectiva, o jardim do Passeio Público do Rio de Janeiro, como o primeiro jardim público construído no país,  diante do seu potencial ativo dentro da sociedade que o gerou,  torna-se um excelente exemplo ilustrativo da capacidade transformadora do espaço, mas também das relações e práticas científicas que ocorreram à partir dele. A ordem do mundo social  é arbitrária e da ciência também, não são naturais nem orgânicas. O homem por meio da cultura “tira o caos do mundo” através da ciência e materializa esta ordem de mundo, através das formas/artefatos especializados simbolicamente, sobre o mundo. Para certas ordens  adquirirem prestígio e credibilidade, certos  “modelos” solidificados por meio das  formas espaciais, precisam ser identificados no espaço, para ganharem reconhecimento, na medida que qualificam este espaço.  O modelo arquitetural da  forma-jardim confere ao espaço, que se pretende civilizar, a qualificação necessária para o validá-lo como uma forma voltada ao esclarecimento intelectual e científico, atributos indispensáveis, do programa modernista tributário do Iluminismo científico. E neste sentido, o jardim cumpre um papel  para além do embelezamento estético ou higienista, para cumprir também  o de um espaço de desenvolvimento da ciência.

A preocupação com os espaços da ciência entre historiadores da ciência e a proliferação de estudos que envolvem a espacialidade do conhecimento científico sugerem que os motivos geográficos continuaram a guiar e inspirar novos trabalhos sobre sociologias histórica da ciência (NAYLOR, 2005).

E acreditamos que o estudo de jardins, como o Passeio Público do Rio de Janeiro, enquanto uma heterotopia que justapões vários outros espaços, inclusive o científico, pode ser um objeto profícuo para que se possa compreender melhor como estes estudos científicos e suas espacialidade se dão, podendo nos oferecer caminhos para se conhecer melhor as relações sociais que as movimentam.

Christiane Chagas Martins

Agosto, 2018.

Imagem: Parque dos Poetas,  Lisboa, Portugal. Fotografia: Rubens de Andrade. Abril, 2018.

 

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